Patético
Os seres humanos corrompem. Corações, sentimentos e até palavras...
Foi Nelson Rodrigues que me abriu os olhos para essa verdade (óbvia, como todas que ele apontava) que ora lhes revelo. E dei-me conta de que isso atingia até mesmo as palavras após ser muito espicaçado pelo vocábulo “patético” nos contos e memórias do escritor fluminense. Por vício adquirido pela influência do mau uso que a maioria faz do referido adjetivo, me soava muito insensível aquele termo referindo-se à dor ou sofrimento ou algum outro sentimento puro de uma pessoa.
Sentindo que algo havia de muito errado no significado que eu tomava como o respectivo para essa proparoxítona, consultei diversos dicionários. Aurélio, Houaiss, Michaelis. Todos confirmaram minha suspeita e informaram que patético nada tem a ver com apatetado, que parecia ser sinônimo. A definição mais simples veio do Michaelis:
pa.té.ti.co
adj. Que comove, que enternece. S. m. O que comove, o que fala ao coração.
Não sei como se chegou ao sentido que a maioria usa atualmente, se por uso sarcástico do sentido original da palavra se por confusão com a palavra que eu acreditava possuir sinonímia com esta. O fato é que se usa uma palavra extremamente forte, supinamente comovente para descrever algo tolo, sem sentido. A mãe de Beslan, envolta e crivada de dor, é patética. Um amor mais forte que a distância e o tempo é patético. A miséria humana é patética.
Mãe de criança morta em Beslan
Outro exemplo de palavra que perdeu o rumo de seu significado original é o verbo “adorar”. Originalmente significando cultuar uma divindade, a palavra encontra-se banalizada, despida do pudor do uso. Não é mais um sinônimo de idolatrar e pode ser vista em uso como mera hipérbole de gostar. Ninguém mais diz a um bom mas não muito íntimo amigo “eu te gosto muito”. Já descamba-se para o desnecessário adorar. Uma tremenda heresia. Adora-se ao deus de nossa fé, e – não distanciando-se muito do conceito original da palavra – nossa família. Nossos pais que nos geraram, nossos filhos que são nosso legado, nossas esposas com as quais decidimos compartilhar o restante de nossas vidas. Adorar é mais que amar, pois adorar só pode existir quando há inabalável convicção do amor do outro por nós – como o de nosso Pai por nós, que jamais nos abandonará, por ser seu amor irrestrito.
Mas este exemplo já compreende a corrupção não somente das palavras e seus significados, mas dos sentimentos arraigados a eles. Não chega a ser surpresa que isso ocorra em tempos tão malucos (o que Nelson disse em sua época eu repito: “Quero crer que certas épocas são doentes mentais. Por exemplo: – a nossa.”), onde tudo pode acontecer, até mesmo o mais absurdo dos acontecimentos. Mas é sempre triste. É sempre... patético... que as pessoas continuem a empregar as palavras sem saber-lhes o significado correto, assim como usam outras pessoas sem que lhes observem os sentimentos. Ignoram-se significados como ignoram-se corações e memórias de paixões.
Marcadores: Nelson Rodrigues, Patético
2 Comments:
Caramba, texto patético, no sentido de comover-nos ao nosso próprio comodismo. Comodismo de dar pouco valor pr‘a única maneira direta de nos expressar.
Só por tratar de um assunto que poucos têm coragem ou sapiência para abordar já valeu o texto.
Pensava que só eu usava o correto de "adorar". E nem tudo está perdido vejam só!!!
Uns adoram a deuses, eu prefiro adorar o que me eleva, me fortalece.
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