Wakizashi - Morrer para viver
Este texto precisa ser escrito logo. Necessito com urgência insana pô-lo em escrita para que liberte meu intelecto e meu sentimento de seu jugo inclemente. Preciso do alívio para a inquietação que me aflige quando os adboards das quadras de volleyball do Campeonato Mundial aparecem, em minhas madrugadas insones, impingindo à minha visão kanjis e kanas que me trazem reminiscências impressionantes. Esperava um momento mais distante para pegar minha pena e papel digitais, mas não consigo mais suportar o doloroso eco do ganido que precisa ser livre.
Uma das cadeiras que faço neste semestre na universidade é "Cultura Japonesa I". O conteúdo é dos mais cativantes mas, por diversos motivos, a aula per se nunca atingiu o cimo do que poderia ser. Entre esses motivos, colegas metidos a J-Pop, uma insalutífera densidade feminina (só 20% de mulheres), e inquietações causadas pela retórica (cheia de tropeços) e pelas roupas (aflitivamente retraídas) da professora. Nomes de dinastias, cidades, códigos de ética, imperadores, divindades, pessoas históricas, tudo isso confunde-se no conteúdo, e apenas parte das lições me ficaram fixadas.
Nada obstante, a aula mais recente teve um teor altamente filosófico para mim, embora - estou seguro - tenha sido só eu a perceber e a assimilar tal teor. Falamos dos samurais e seu código de ética. Lemos um texto intitulado "Bushidô: a arte de morrer", retirado de algum livro. E foi a partir de aí que as coisas ficaram realmente interessantes. O texto fala, preponderantemente, sobre o código dos samurais, e qual a relação dele com o destemor da morte demonstrado por esses guerreiros. Em verdade, os samurais viviam cada dia de sua vida como se fosse o derradeiro. Entendiam a fragilidade da vida, mas também a importância dela. Não a menosprezavam (o harakiri - também chamado seppuku - era sempre motivado por alguma questão transcendente e era um ato restaurador de honra e brio), mas não se apegavam a ela. Estavam dispostos a morrer por um ideal e a qualquer momento, por isso aproveitavam cada dia intensamente. Eis alguns trechos do texto, para ilustrar:
"(...) o destemor da morte e a disposição ilimitada de perder a vida é a precondição para salvá-la."
"Viver consiste em morrer. Em se estar preparado para a morte. Para morrer como um homem. Um homem se reconhece pela sua morte, pela sua capacidade de dar sua vida. Não apenas numa batalha, mas em tudo aquilo que faz. Não apenas na morte (...) mas a cada instante e ato de sua vida."
"Em tudo o que um homem faça deve ter posto seu coração."
Em seguida, assistimos a um tocante filme, que ilustra com imagens esse texto: Seppuku (de 1962, em alguns países lançado sob o título de Harakiri). Recomendo copiosamente que assitam, pois dá a exata noção de honra samuraica. Eis a página do filme no IMDB e um bom site em português sobre a obra.
Enfim, como freqüentemente acontece, a exemplo de uma frase de Nelson Rodrigues, "falo, falo e não digo o essencial". O fato é que esse filme corroborou com uma das convicções existentes em minh'alma sobre as ordens que regem a vida. No mês passado foi um clássico libertino francês que me deu novas noções metafísicas. "Teresa Filósofa" trouxe-me a convicção de que o livre-arbítrio é uma ilusão, e que não passamos de fantoches da vontade de Deus. Surpreendentemente, esse fato não me fez sentir oprimido nem sequer desanimado. Ao invés, deu-me novo ânimo: Sendo nosso Deus um deus bondoso (e não o da Igreja Católica, dado a acessos de ira) e sendo que tudo provém dele, não temos por que temer o destino.
Harakiri ampliou-me a certeza de que é preciso defender os entes queridos, seguir o que sabemos ser certo, sem dar espaço para desvios ocasionais na ética, sem deixar a confiança abalar-se, e, mormente, viver cada instante como se fosse o último. Somente assim se obtém a plenitude sublime da vida. Só assim, com o constante sentimento de que pode ser a última vez que vemos uma pessoa ou que fazemos uma tarefa, olharemos com mais ternura sua face e nos concentraremos com toda nossa alma na labuta.
O que me angustiava e espicaçava , e que me impeliu a publicar tão logo este texto é, em especial, a wakizashi, a espada curta com que o samurai executava seu seppukuru. Me surpreendeu saber que, a despeito de toda glória atribuída às katanas, as espadas curtas eram as ceifadoras das vidas desses homens. Eram elas a ter com estes homens um contato mais profundo na derradeira hora de glória do guardião.
Yamazato Dragon Wakizashi
A minha wakizashi foi o "Morto (mas não enterrado)", publicado há algum tempo neste blog. Morri para desagravar-me das injustiças, para protestar contra intransigências alheias, e para redimir-me pelas minhas.
Agora, vivo assim, morrendo a cada manhã, para ir dormir à noite com a certeza de ter vivido plenamente.
Agora, vivo assim, morrendo a cada manhã, para ir dormir à noite com a certeza de ter vivido plenamente.
2 Comments:
Leio em casa. ´Tô no trabalho e daqui a pouco vou dar uma aula de reforço.
Na verdade, pelo pouco que eu sei sobre o assunto, "harakiri" é um modo ocidental de enxergar o ato do suicídio japonês. Se não me engano "harakiri" é, literalmente, algo como "cortar a barriga" (hara=barriga, kiri=cortar). Já o "seppuku" é todo o ritual que envolve, claro, a parte de enfiar a wakizashi no ventre e puxá-la até onde for possível.
Ok, meu comentário foi inútil, deixa pra lá!=D
É só porque esse texto em particular me chamou atenção...=)
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