A+
UFRGS – UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
BRUMAS E ESCURIDÃO
Ensaio sobre o Obscuro em Arinos e Maupassant
Gustavo Ribeiro
Leituras Orientadas II
Denise Vallerius de Oliveira
Porto Alegre, Dezembro de 2007
O presente ensaio propõe-se a pertencer à estirpe dos ensaios informais (também chamados ensaios comuns) e, justamente por isso, é composto da defesa do ponto de vista que quem o escreve tem sobre o assunto. Com isso, creio, não fujo ao ideal de Ortega y Gasset, quando formulou sua definição de ensaio como “a ciência sem prova explícita”, nem ofendo os ensaístas de antanho, como Bacon ou Montaigne.
Ademais, este ensaio busca a tão propalada interdisciplinaridade, tendo como objetivo traçar uma relação entre áreas de conhecimento não exatamente apartadas, mas a princípio estudadas separadamente: as obras que influenciaram a formação do cânone literário mundial e as obras que constituem o corpus de estudo da literatura brasileira (o que, como pretendo demonstrar, prova que a literatura feita no e relativa ao Brasil também tem grande qualidade, não ficando aquém de obras estrangeiras).
Para principiar este estudo, a fim de que ele seja plenamente compreendido, é preciso apresentar ao leitor certos fatos, certas informações prévias à discussão, à reflexão propriamente dita. Começo, então, por um breve relato biográfico dos homens, para que as obras que deram ao mundo fiquem mais bem contextualizadas.
Afonso Arinos
Com dezessete anos Afonso Arinos¹ (Afonso Arinos de Melo Franco; Paracatu, Minas Gerais, 1º de maio de 1868 — Barcelona, 19 de fevereiro de 1916) iniciou o curso de Direito
Recebeu em 18 de setembro do ano de
Guy de Maupassant
Guy de Maupassant (Henri René Albert Guy de Maupassant; Fécamp² França, 5 de agosto de 1850 — Paris, 6 de julho de 1893) estudou durante a infância em um liceu em Rouen e participou por oito anos dos Ministérios da Marinha e da Instrução Pública. Foi iniciado e encorajado nas letras por Gustave Flaubert, seu primo por parte materna, e teve uma vida, embora curta, muito produtiva, escrevendo, além de alguns romances e novelas, cerca de 250 contos. Entre suas obras destacam-se, entre outras, Boule de suif (1880), o seu contributo para Soirées de Médan e nascido da convivência com grandes escritores franceses como Zola;
Pela época em que escreveu essas obras, viajou pela Argélia, Córsega, Inglaterra e Itália. Mais tarde, compilou relatos dessas viagens e publicou-os. Recusou convites para participar da Academia das Ciências e não aceitou receber a Legião de Honra.
Perturbações nervosas que o atingiam desde 1890 fizeram-no tentar suicídio em 1982 e, como conseqüência, foi internado em um hospício. Lá, faleceu no ano seguinte, próximo da loucura.
Ambos tiveram vidas curtas, em épocas semelhantes e conheceram outros grandes homens de suas pátrias. Mas há outras semelhanças, essas mais profundas, entre Arinos e Maupassant, ou por outra: entre suas obras. Para o objetivo de análise de características estilísticas parecidas entre ambos, tomo, de Arinos, o conto “Assombramento (História do Sertão)”, e de Maupassant o conto “O Medo”.
Os enredos tratam: Em Arinos, de um homem valente, que decide passar a noite em uma tapera tida pelo povo da localidade como assombrada, fama da qual duvida muito este senhor, chamado Manuel Alves. Em Maupassant, de um homem que conta o relato que ouviu, de um companheiro de barco, acerca do que aquele considerava ser o real medo.
As linguagens dos dois textos diferem muito uma da outra. Devemos levar em conta que, apesar de terem vivido praticamente na mesma época, Maupassant e Arinos pertencem a períodos literários, contextos sociais e contextos locais muito dessemelhantes. A leitura de Arinos pode ser difícil porque é pontuada de termos locais, próprios da região de Minas Gerais. Problema maior é, contudo, a extensão de certas frases, que chegam a mais de 65 palavras. A prosa de Maupassant é mais universal, menos regional (em termos de expressão, não alcance), e de frases bem menores.
Os personagens principais dos contos são homens destemidos, tidos por si próprios e por outros como de grande coragem, como se vê nos trechos a seguir:
“Mas o cuiabano Manuel Alves, arrieiro atrevido, não estava por essas abusões e quis tirar a cisma da casa mal-assombrada. (...) dizia ele que tinha corrido todo este mundo, sem topar coisa alguma, em dias de sua vida, que lhe fizesse o coração bater apressado de medo. Havia de dormir sozinho na tapera e ver até onde chegavam os receios do povo.” (Arinos)
“Então, um homem alto, de rosto tisnado e aspecto grave, um desses homens que nos dão a impressão de terem atravessado vastos e desconhecidos países, no meio de perigos constantes, e cujo olhar tranqüilo parece conservar, lá no fundo, algo das paisagens estranhas que viu, um desses homens que adivinhamos forjados na coragem (...) ‘Lutei muitas vezes. Fui largado como morto por ladrões. Na América, fui condenado à forca como insurreto, e fui atirado ao mar do tombadilho de um navio, nas costas da China. Em cada uma dessas ocasiões, julguei-me perdido e resignei-me à situação sem sentir compaixão nem lamentar-me’ ”(Maupassant)
Essa postura de destemor ante os perigos, ante as dificuldades e complicações é fundamental para acrescentar profundidade e imponência ao medo, ao Desconhecido com que se hão de deparar estes homens,
Já em Arinos, embora não sejam descritos com muito detalhamento os atos de Manuel, sabe-se que não só ele desfaz da fama de sobrenatural da velha casa abandonada, mas até os homens que o acompanham o fazem, como se pode ver nesse trecho do capítulo II, fala de um dos tropeiros:
– “Cá por mim, o defunto que me tentar morre duas vezes, isto tão certo como sem dúvida”.
Esse destemor não é confirmado, contudo, quando há de fato a confrontação com acontecimentos possivelmente sobrenaturais. Tanto Manuel como o “homem tisnado” sem nome de “O Medo” tomam atitudes que não confirmam suas famas de destemidos. O primeiro treme-se de medo e grita contra “mandingueiros do inferno” por botarem “mandinga” quando sua arma de fiança não funciona. O outro fica paralisado, treme, não consegue agir, porta-se como mero espectador, enquanto pai e filhos tentam deter a “assombração”.
O espaço, a ambientação desses eventos também é muito semelhante. Ambos se passam em uma casa (tomando-se, de Maupassant, apenas o segundo relato de “O Medo”), à noite. A tapera da obra de Arinos é decrépita, já com o assoalho e o teto danificados. A casa do outro conto está mais bem conservada, nela ainda vive uma família. Mas mesmo assim é assombrada, pela presença de um homem morto, no passado, pelo pai da família. A descrição dos ambientes ajuda, e muito, a compor o clima de terror, de desconhecido, de indefinido, como nos trechos a seguir:
“À beira do caminho das tropas, num tabuleiro grande, onde cresciam a canela-d'ema e o pau-santo, havia uma tapera. A velha casa assombrada, com grande escadaria de pedra levando ao alpendre, não parecia desamparada. (...) Naquele escampado onde não ria ao sol o verde escuro das matas, a cor embaçada da casa suavizava ainda mais o verde esmaiado dos campos.
“(...)estrebarias meio apodrecidas, os paióis, as senzalas em linha, uma velha oficina de ferreiro com o fole esburacado e a bigorna ainda em pé.” (Arinos)
“Foi no inverno passado, numa floresta a nordeste da França (...) A noite chegou duas horas mais cedo, de tal modo o céu estava sombrio. Tinha por guia um camponês que caminhava ao meu lado por uma trilha muito estreita, sob uma abóbada de abetos através de cuja ramagem uivava um vento furioso. Por entre a copa das árvores, via nuvens correndo em desordem, nuvens enlouquecidas que pareciam fugir de algo aterrador.”(Maupassant)
A noite, o silêncio, a escuridão, as coisas velhas, apodrecidas até, como o chão da tapera e sons incompreensíveis ouvidos, indubitavelmente ajudam a formar o sentimento de estranhamento nas duas obras. E, principalmente, objetos e seres inanimados com propriedades humanas ou animalescas – “vento enfurecido”, “nuvens enlouquecidas que pareciam fugir de algo aterrador” escreveu Maupassant; “(...) a ventania – alcatéia de lobos rafados – investiu uivando e passou à disparada, estrondando uma janela”, disse Arinos – colaboram para o desfazimento das noções de realidade. As coisas são mais aterradoras porque não se definem, não são claramente explicáveis ou sobrenaturais (um conceito talvez próximo do Das Unheimlich de Freud). Por vezes, pode-se até questionar a sanidade dos personagens, ou ao menos suas estabilidades emocionais ante ao inexplicável. O medo daquilo que não podem definir os abala, aos dois protagonistas.
O ataque de Manoel ao que ele crê ser um fantasma acaba apenas destruindo a rede que seu amigo pusera, a seu pedido, na sala da tapera, para que pudesse descansar durante a noite. Coisa semelhante ocorre no conto do escritor francês: Disparam contra o que parece ser uma cabeça branca que lhes aparece do lado de fora da casa, mas, no dia seguinte, descobrem que quem fora alvejado era apenas o velho cachorro da família, que durante a noite agitara-se e fora enxotado de dentro da residência. Em ambos os casos, o que se acredita ser sobrenatural é retratado com a cor branca, e aparece um tanto informe, leve, translúcido e diáfano.
Por fim, ambos os protagonistas terminam os contos profundamente abalados pela experiência (Manuel, pode-se dizer, até transtornado; o homem do outro conto muito marcado, tanto que conta a experiência a outros com muita gravidade). As duas experiências aterrorizantes têm fim com o chegar da manhã, que além de luz, traz segurança e alívio aos personagens.
Uma última discrepância que se deve notar, entretanto, é que o final de “Assombramento” tem forte teor religioso, com as orações em grupo, um forte momento de fé. Na obra de Maupassant não há traço explícito de devoção religiosa, muito embora as mulheres voltadas para a parede pudessem estar rezando. Os finais refletem, de forma emblemática, as obras na totalidade, ou seja, não há presença da fé nessa obra do escritor francês, enquanto todo o texto de Arinos é pontuado por expressões religiosas, especialmente de Venâncio.
Referências Bibliográficas:
ARINOS, Affonso. Pelo Sertão. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, [1940?].³
MAUPASSANT, Guy de. Contos Fantásticos: O Horla & outras histórias. Porto Alegre: L&PM Editores, 1999.
OLIVEIRA, José Lourenço de. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/lourenco/banco/EH01.html Acesso em: Novembro de 2007
VÁRIOS. Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_Arinos_de_Melo_Franco
(_______). Disponível em:
http://en.wikipedia.org/wiki/Guy_de_Maupassant
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Disponível em:
http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=357
[1] Algumas vezes escrito com dois “f”, mas comumente com apenas um. Não confundir com seu homônimo Affonso Arinos de Melo Franco, de nome idêntico, de nome idêntico, com dois “f”. Não se trata do mesmo escritor. Parece haver parentesco entre os dois, mas dados concretos a esse respeito não puderam ser encontrados. O escritor de que trato ocupou a cadeira de n° 40 na Academia Brasileira de Letras, o outro, ocupou a cadeira de n° 17, de forma que não há possibilidade de ser apenas uma grafia errônea do nome do mesmo indivíduo.
[2] Não há consenso sobre o local de nascimento de Maupassant. Algumas fontes indicam Fécamp, mas outras mencionam o Château de Miromesnil, perto de Dieppe, no departamento de Seine-Inférieure (atual Seine-Maritime).
[3] Na edição da Livraria Garnier não consta a data de publicação. A data de 1940 é a que consta no catálogo da Biblioteca Setorial de Ciências Sociais e Humanidades da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nessa mesma edição o primeiro nome de Arinos é grafado com duas letras “f”.
0 Comments:
Postar um comentário
<< Página Inicial