Sobre historias infantis
Minha primeira idéia foi: vou defender os gatos. Mais de um colega apresentou o gato em sua fábula como preguiçoso ou traiçoeiro. E eu pensei: e o Gato de botas? Será que eles não conheciam a história do felino calçado que era “um amigo leal e astuto”? Mas deixei essa idéia de lado porque, a bem da verdade, não lembro de ter conhecido essa história na infância – e a proposta era: uma comparação entre duas visões, a infantil e a madura.
O que me aconteceu depois foi um pouco perturbador: percebi que não lembrava de nenhuma história infantil. Claro, conhecia, reconhecia, identificava todas as mais clássicas: os três porquinhos, cachinhos dourados, Pedrinho e o lobo... Mas nenhuma dessas memórias vinha diretamente da minha infância. Conheci todas essas histórias depois da idade em que geralmente elas são contadas para as crianças; conheci por mim mesmo, em revistas, em desenhos animados, em livros... meus contadores de histórias eram os gibis e a televisão.
Fui perguntar à minha mãe se o problema não era a minha memória: não, não era. Exceto um Peter Pan aqui e uma Chapeuzinho Vermelho ali, depois dos meus primeiros anos de idade nunca mais me contaram histórias. Minha imaginação era alimentada por histórias em quadrinhos. Se isso por um lado é bom (por que a leitura começou cedo e talvez seja só por isso que hoje curso Letras) por outro lado sinto um pouco de pena de todo esse mundo que conheci pouco e do qual já não me resta quase nada.
Bem, eu ia fazer o melhor possível com o que tinha: Chapeuzinho e Peter Pan, então, mesmo que apagados. Até que aconteceu um imbróglio aqui na minha rua: um cara roubou a bolsa de uma moça na parada de ônibus e foi cercado por – sem brincadeira – uns dez veículos da PM depois de uma perseguição. Aí pensei nas alegorias que eu podia fazer: antes as crianças talvez se assustassem com um lobo mau e se aliviassem quando o caçador viesse com sua arma e salvasse o dia. “Mas e o hoje em dia” – eu perguntaria – “como é que se pode trabalhar os medos na cabeça da criança se tanto o lobo mau quanto o caçador usam armas, se a violência não vem mais dos bosques escuros somente, se ela vem de desconhecidos, de professores, de outras crianças, à meia-noite ou às 3 da tarde?”. Sairia um texto interessante, mas pessimista e meio ao estilo daqueles estudiosos que em todos os contos vêem elementos violentos, sexuais, corrompidos etcétera.
Tudo isso, todos essas curvas no assunto, essas trilhas irregulares no tópico do texto, para dizer que, se por um lado eu não lembro de histórias no estilo Irmãos Grimm na infância, eu acredito nelas agora. Acredito com uma crença que, infelizmente, se situa entre a da criança e a do adulto – entre o deslumbramento e o gosto estético.
Não sair por caminhos desconhecidos marcando o trajeto com migalhas de pão, é claro. Mas me divirto com histórias de cronópios e de changelings. Não tremo de medo do lobo mau, vilão procurado por suínos e humanos (e vai saber mais quantas espécies...) nas histórias infantis; mas me abalo com as histórias do ser mais inacreditável que existe: o ser humano. Estou junto com Horacio Oliveira quando está na sarjeta e também estou com Antoine Roquentin quando se surpreende de que tudo tenha existência.
O prazer de uma narrativa, afinal, independe da idade que se tem e da história que se lê ou ouve: depende da capacidade de maravilhar-se, sempre.
Marcadores: Produção Textual I, UFRGS
0 Comments:
Postar um comentário
<< Página Inicial