Úrsula (crônica)
(Ok, história um pouco requentada... mas eu estava sem idéias para uma crônica... então dei nova roupagem a essa velha bela história)
A lógica das crianças, junto com certa graça, tem uma clareza de visão que parece totalmente alheia à lógica dos adultos, e muito mais profunda também.
Se o Dante que escreveu “Da Monarquia” fosse criança (claro que mantendo seu conhecimento enciclopédico e suas convicções sociopolíticas) não gastaria uma centena de páginas para provar, por meio de silogismos, citações de Aristóteles e outros recursos, que igreja e estado deveriam estar separados. Provavelmente ele diria simplesmente “Ué, são duas coisas diferentes!”; o que é um argumento simples, mas inegável.
Claro que a Úrsula não era nenhum Dante, mas a lógica dela tem lá seu valor e inclusive pode fazer um bem pra sociedade.
Era um dia de calor, bom mesmo para estar no clube; se não dentro da piscina pelo menos debaixo de um guarda-sol, que é para escapar do mormaço sufocante. Eu ali, bem sentado numa espreguiçadeira. Parecia que eu estava numa fila de banco (porque o tempo não passava), uma fila de banco dentro do Mauna Loa, porque tinha a impressão que de tão quente logo algum vulcão ia entrar em erupção.
Tentando absorver por osmose ou por milagre aquela quase-brisa, fechei os olhos e sonhei acordado com as praias de Barbados e as mulheres exóticas da ilha. Devia estar com a expressão mais aparvalhada do mundo quando sinto algo puxar o meu calção.
Virei a cabeça para o lado, com a sensação de está-lo fazendo em câmera lenta e vi a pequena ali. Já a tinha visto antes, eu e minha namorada conversamos com a mãe dela antes, até já sabíamos o nome dela, que ela tem cinco anos, que está quase entrando na primeira série e que – ela fez questão de frisar isso – não gosta da cor vermelha. Vi aquela carinha ainda molhada de lágrimas, mas com uma expressão muito maior de indignação do que de tristeza.
Perguntei:
- O que foi, Úrsula?
Ao que ela respondeu, muito séria, e com ar de ofendida em sua dignidade:
- Ela me deu de chinelo! – disse, apontando para a mãe. E de chinelo vermelho, ainda!
Saiu indignada, como se fosse se queixar ao Papa. Ou ao Imperador. E eu me deixei ficar ali, um pouco mais desperto e muito mais divertido, concordando silenciosamente com Úrsula: se vão bater na gente com chinelo, que pelo menos seja um chinelo da cor que a gente goste.
Marcadores: Produção Textual I, UFRGS
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