Não tem graça
Agora o mundo vive em paz. Acabaram-se os filicídios, patricídios, matricídios, fratricídios. Qualquer assassinato já não faz mais sentido. Aprendemos a respeitar o próximo, não importa o quão próximo esteja (já que, descobrimos, quanto mais próximo mais difícil realmente amar). Nem brigas de trânsito há, e apenas lamentamos quando lembramos que pouco tempo atrás a violência explodia de madrugada em cruzamentos movimentados e lá éramos homens e mulheres de Neandertal, habitantes de cavernas modelo do ano, com clavas quadriband que usávamos como arma, atingindo no rosto aqueles com quem tínhamos de dividir espaço, reafirmando com as porradas GSM que o espaço era nosso, era do mais forte, do mais brutal e cavernoso.
Nossa ignorância escoou-se até mesmo das paixões futebolísticas e agora todos sabem que, se o time perde, não adianta cobrar mais e mais, fazer cenas passionais como cornos futebolísticos, jogar cédulas amarfanhadas, ameaçar jogador, chamar técnico de burro, apedrejar ônibus como se fosse prostitutas bíblicas; quando finalmente nos demos conta de como tudo isso põe nervosos a todos, deixando a bola ainda mais cúbica que esférica, ficamos envergonhados de nossa própria burrice.
Como a violência cessou de nos interessar, quebramos o círculo e não alimentamos mais a mídia que explora a desgraça humana, a agonia, o desespero e a dor, confortavelmente servidos em uma ascética bandeja coberta com o enganoso pano da benfeitoria. Também se acabaram os reality shows, porque agora só nos interessa a verdadeira realidade (que em nada se parece a um confinamento cheio de mordomias), suas complicações e as maneiras de expandi-la, aproximando o homem de seu potencial total, absoluto.
Ajudou muito nisso nosso senso crítico de cultura e o acesso mais fácil a ela: livros, discos, shows, peças... tudo por um preço que já não obriga a escolher entre o prato ou o ingresso. Para divertir, sim, mas também para pensar, para sentir, para questionar, para descobrir-se e situar-se no mundo e em relação aos outros.
Enfim, já não se precisa mais temer olhar e sorrir, ninguém mais encara essas expressões como armas ou agressões e são bem recebidas, como expressão de louvor aos novos tempos, que tanto merecemos por tanto termos lutado por eles.
1º de abril (e não tem graça).
1 Comments:
Realmente vivemos e vemos o primeiro de abril todo dia e muito me impressiona que as pessoas hoje usam o caos da vida urbana como forma de entretenimento
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