Conta-me Uma História
Sons estranhos. Era o vento, soando semivocalicamente lá fora. Uma noite fria. Fria e escura! Como a algum tempo não se via. Ah, suspirou ele. Era ótimo chegar em casa! Um ambiente aconchegante, repleto de paz e sem pessoas carregadas de energias negativas. Pode parecer um pensamento um tanto “nova era”, mas é a mais pura verdade para um changeling.
Pousou o casaco suavemente no cabide ao lado da porta de entrada e esfregou os braços com as mãos, como se ainda estivesse sob ele o frio que lá fora castigava um sem-número de desabrigados. Poderia ficar muito triste por eles, afinal sua natureza sempre fora piedosa, mas preferiu pensar nas coisas boas. Não nas coisas boas do outro lado do mundo, ou mesmo na vizinhança: pensaria somente na segurança de seu lar. Seu refúgio sagrado, seu bastião. Definitivamente, era ótimo estar de volta.
Os olhos ardendo pela poluição densa piscam, se acostumando à luz do interior da casa. Tira as luvas, revelando dedos brancos e enregelados que até dão um certo arrepio quando ele leva a mão direita à parte anterior do pescoço, procurando corrigir a postura que lhe originou um leve torcicolo. Engole a pouca saliva que resta na boca, seca pelo vento e frio inclementes.
Aproximou-se do tocador de discos dos anos 80, que desde lá não precisara de mais que um par de reparos, e começou a perscrutar os discos de vinil, em busca de algum que caísse bem para se ouvir no atual humor em que se encontrava. Cogitou ouvir o seu vinil favorito dos Beach Boys, chegando até mesmo a fazer menção de pegá-lo, mas desistiu quando lembrou-se que “God Only Knows” poderia trazer tristes lembranças, que o fariam cantarolar “God only knows what I’d be without you” entre lágrimas e soluços. Decidiu-se então por um dos seus vinis de Jazz. Somente canções instrumentais. Não era nada mal relaxar ao som de uma seleção musical elegante, encabeçada por “Love Is Here To Stay”, de George Gershwin.
Sentou-se no sofá, começou a murmurar imitando a melodia da canção, retirou os sapatos e recostou-se. Com olhos fechados, fez silêncio. Imaginava-se nos tempos dourados do Jazz e do Blues, onde as divas eram Etta James, Diana Ross, e tantas outras de elegância e beleza indizíveis, não um bando de meninas mal saídas dos cueiros fazendo movimentos que deveriam ser considerados obscenos, mas já tiveram seus sentidos banalizados.
Lembrou-se então de como Sinatra cantava essa mesma canção. Repetia para sim, em silêncio, imitando o “blue eyes”:
“In time the rockies may crumble
Gibraltar may tumble
They're only made of clay but
Our love is here to stay”
Levantou-se, tencionando tomar um banho relaxante e depois ler algo que o inspirasse. Porém, antes que atravessasse por completo o corredor que leva à parte mais interior daquele antigo prédio do corpo de bombeiros, agora transformado em lar, é interrompido de forma muito carinhosa por ela. Tinha genuína vontade de agarrá-la e fazer cócegas intermináveis em sua barriga quando vinha correndo e abraçava-o com tanto carinho.
A menina vestia uma camisola de cor violácea, que tinha uma forte ambigüidade entre sensual e infantil. Assim, também, contrastava ela própria: às vezes criança ingênua, às vezes mulher sensual.
Como foi teu dia, Li? – disse ele, segurando-a num forte abraço. Ao que ela respondeu:
- Foi chato... As pessoas acreditam cada vez menos nos sonhos delas, não? Às vezes é tão difícil conviver com essa gente toda, sem esperança...
Ao ouvir isso, ele franziu a testa e seu rosto foi tomado por uma expressão de compreensão e lamento. Ele próprio, mais até do que ela, sentia muito isso. E como o machucava aquilo.
Mas logo tratou de animá-lo, dizendo doce e infantilmente:
- Mas deixa isso pra lá... Sabe o que? Me conta uma história?
Ele fez uma expressão de cansaço e desânimo. Estava realmente exausto e precisava tomar um banho morno. Fez então a entender que não seria possível, com aquela típica cara de “não vai dar...” ostentada por um preguiçoso.
Mas ela usou seu maior trunfo. Se tivesse lançado mão de seu domínio sobre Soberania talvez ele ainda fosse capaz de oferecer resistência. Mas, não, nenhum ser em toda a Existência seria capaz de resistir àqueles olhinhos dourados e pidões, que com um “por favor” a acompanhá-los poderia convencer a mais resoluta das criaturas a fazer algo a que normalmente não estaria disposto.
- Está bem, está bem... O que queres que eu leia hoje? – disse ele após um breve e quase inaudível suspiro
- Hum... que tal... uma lenda? Mas não diretamente sobre os Kithain... Algo diferente...
Ângelo refletiu, e recordou-se que tinha um livro que poderia agradar a Aline em sua biblioteca. Fui buscá-lo e, quando retornou, a menina já estava ansiosa, pulava no lugar de excitação e desejo de ouvir a narração daquele que considerava como pai.
Tão logo ele sentou-se no sofá, a jovem se aninhou entre seu braço esquerdo e seu peito, em um fraterno, porém mais que isso, abraço. Ela encolheu-se tanto o quanto pode, para proteger-se do pouco frio que ali dentro havia. Assim que parou de contorcer-se em busca da calor, Ângelo começou sua oratória:
- “Essa é a história de Galaaz.” – fez uma breve pausa e continuou - O rei dos celtas britânicos, Artur, congregou os seus cavaleiros e lhes pediu que fossem buscar por todo o mundo o Graal, que somente poderia ser conquistado por uma alma pura sem mancha de mal. Um destes cavaleiros era Galaaz, que se põe imediatamente a caminho.
Neste ponto, é interrompido pela afoita menina dos cabelos cor de fogo, que lhe interpela:
- “O que é o Graal? E como era esse tal Galaaz?”.
- “O Graal seria, segundo os cristãos, o cálice no qual o salvador da humanidade teria bebido, em sua última refeição. Quanto à identidade de Galaaz... bem, nada sei de relevante a seu respeito.
O troll contador da história prossegue:
- “Galaaz vai através de bosques e montes, até chegar a uma praia onde aparece uma solitária nave com um cálice de ouro bordado na sua vela. Galaaz sobe ao barco e este se faz ao mar, chegando depois de dois dias a uma costa desconhecida. O cavaleiro desembarca e adentra-se em terra firme; ante os seus olhos estende um país maravilhoso. Galaaz encontra um campesino a quem pergunta em que lugar se encontra, ao que este responde que anda a caminhar por terras da Galicia. Galaaz continua o seu caminho, porém ao chegar a noite apareceu um enorme monstro, a ...”
Neste ponto, Ângelo é novamente interrompido por Aline que, assustada, pergunta:
- “Como era esse monstro? Era grande e feio e... e... perigoso?”
O homem ri simpaticamente, e diz, com um ar de bondade e carinho por aquela que tem como filha:
- “Não se preocupe... Esse monstro já não mais existe, pois, como diz o texto...
“... um enorme monstro, a que pôde derrubar, cravando-lhe a espada, que baixara do céu, no coração.” – Faz um pausa durante a qual sorri amistosamente. – “Continuou a sua viajem e, depois de passar muitos vales, encontrou junto a uma fonte, uma moça que o recebe com expressão amorosa, porém Galaaz, fiel a seu juramento, prossegue o seu caminho, vencendo os desejos de corresponder o amor da rapariga. Galaaz por fim, depois da sua longa viajem, conseguiu encontrar o Graal no alto do monte Cebreiro.”
A menina, com um largo sorriso de satisfação no rosto, diz:
- “Obrigado! Vou ter sonhos incríveis esta noite!” – e dá um beijo na face de seu tutor. – Mas que mera essa moça?
- “Não sei ao certo, mas desconfio que seja uma metáfora para as tentações que nos desviam de nossos objetivos e, no caso específico de nós, Kithain, creio que sirva de exemplo da força dos Juramentos. Assim como o que fiz, prometendo te proteger.”
Ela sorri, emocionada, e agradece mais uma vez, completando suavemente como a menina que não deixa de ser:
- “Obrigado! És o melhor pai do mundo!”
Dá outro beijo em sua face, ao que ele retribui da mesma forma. Quando ela principia a se retirar e dá as costas, recebe um tapa de leve em suas nádegas que a faz corar, seguido de um: Nada de ficar acordada até tarde, menina!
Agora sim. Estava só... só ele, o disco, seus pensamentos... e a certeza de ter, mais uma vez, inspirado a beleza.
Nota: a lenda contada por Ângelo a Aline, consta originalmente em galego, no site http://www.geocities.com/Paris/7534/lenda.htm Meus agradecimentos sinceros aos proprietários do site.
2 Comments:
Só para que saibas que sim, ainda estou vivo, apenas estou um pouco sem tempo ultimamente, mas prometo que em breve farei aqui um comentário de proporções gigantescas!
Hugs
Que dizer? Me apaixonei por esse texto!
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