A vendedora de doces e as figurinhas
A quarta-feira foi chuvosa. Depois do almoço no R.U. (Restaurante Universitário), e de derrubar toda uma pilha de bandejas quando coloquei a minha no topo (o que me rendeu um olhar mortal do rapaz da limpeza, indignado com meu desazo), pouca coisa poderia me fazer sentir mais mal.
A chuva apazigou-se, e sentamos, uma colega e eu, em uma mureta que ladeia uma rampa do campus. Sentados, conversávamos sobre LIBRAS (a Linguagem Brasileira de Sinais). Ela me demonstrava alguns sinais, depois de começar a conversa me respondendo qual a palavra mais bela que ela conhecia (eu havia perguntado sobre o léxico alemão, mas a resposta, o "eu te amo" em Libras - o que agora me parece malignamente irônico -, foi tão bonita que aceitei) e eu estava completamente airado, tomado pela beleza do sentido da linguagem de sinais e, devo admitir, pela proximidade dela. Mas, isso já não vem ao caso...
Imerso na voz maviosa, uma outra voz me fez emergir: uma voz mais fina, mais aguda. Uma menininha de roupas e modos modestos. Com caixas de papelão branco nas mãos delgadas e sofridas, a pequena perguntou:
- "Quer comprar negrinho?" (Nota: O doce chamado no resto do Brasil de brigadeiro)
Fernanda respondeu a realidade que era a mesma minha:
- "Ai, desculpa! Só tenho o dinheiro do ônibus!"
E foi aí que Deus decidiu que precisava me dar mais uma epifania sobre a patética natureza humana. Em lugar de voltar-nos as costas e sair caminhando proferindo raivosas (e compreensíveis) palavras, de pedir dinheiro ou mesmo comida, ela simplesmente perguntou à mesma colega minha, como se só a ela interessasse dirigir-se:
- "Teu caderno tem figurinha?"
Fernada respondeu que não, que o caderno dela não tinha figurinhas, e pediu desculpa, chamando a menina de algo doce, como "flor" ou "meu anjo". Foi só aí que percebi que a caixinha da esquálida menina tinha coladas algumas figurinhas, coloridas como os sonhos que ela por certo tem.
Como um trovão que só nos assombra tempos depois que o raio risca a vastidão negra do céu com sua luminosidade, o efeito daquele momento tão simplório foi retardado... Mais tarde é que me dei conta de como aquele "pequeno momento" foi repleto de significado. Pensem bem: o óbulo que ela pediu não serena a fome, não aplaca o frio, não apazigua a dor. Ela quis o sonho. Aquilo que Nosso Pai nos dá juntamente com nossa Alma para que jamais fiquemos presos em demasia ao corpo. O sonho nos eleva, nos leva mais perto da natureza Eteral.
E doeu-me, oh, doeu-me. Saber que não se esmola mais somente o pão, a blusa, o teto. Agora já se implora por atenção, por sonho, por fantasia. E abominei todos os arrogantes e pedantes do Intituto de Letras (pois é mais com eles que convivo) e depois todos daquela Universidade que julgam-se melhores que os outros pelo conhecimento acadêmico (o tenham ou não, dependendo de em qual categoria acima se encaixa o fulano).
E, por fim, questionei-me: Como pode o ser humano discutir letras, números, bytes, gênes, relevos e fechar os olhos à realidade, ao próximo necessitado de tudo? Será que é realmente importante discutir a Literatura de Viagem, a crioulização de pídgins, a unidade temática de uma obra escrita (para essas eu respondo meu parecer: não) e, enfim, todos os assuntos não-humanitários enquanto ali, a uns poucos metros do campus tem uma grande comunidade carente? Não é meio cruel falar em "preconceito lingüístico" enquanto poderiamos falar em preconceito (e combatê-lo) de uma forma geral?
Isso me incomodou muito, deveras. Meu coração parecia não suportar as lágrimas de todos que pediam ajuda enquanto professores cheios de soberba falavam de suas viagens à França, seus mestrados e doutorados, e enquanto a maior parte dos os alunos preocupava-se em parecer já ter lido este ou aquele livro que estes mesmo mestres tinham como sua bíblia pessoal. Já rumava, qual catraia solta na tormenta, para o fim que todos se permitem: alegar que não há o que se possa fazer, as coisas são assim e assim permanecem.
Não. Não comigo. Eu acredito em destino, em puro destino, sem espaço para uma respiração nossa sequer sem que seja permitida por Deus, mas isso não significa ficar de braços cruzados, repetindo feito mantra zen-budista que nada posso fazer. Significa fazer o que é certo, o que é bom, o que Ele nos pede ao coração para fazer.
Comprei umas figurinhas (Branca de Neve, Polly, etc.) para a menina, que me observou quando as entreguei, sentada na escadaria de pedra entre as paradas de ônibus e o patamar dos prédios da Universidade. Tinha os olhos verdes (eu não reparar antes) e como eram bonitos. Não eram verdes por questões genéticas, nem por questões líricas, não me interessa estudar isso. Eram verdes de esperança, esperança de que ainda haja quem não se acomode e faça sua parte para um mundo, se não melhor, mais alegre.
Texto iniciado em 22 de Março de 2007, um dia após o acontecido. Desde lá, algumas coisas mudaram. Espero que a vida da menina também, mesmo que só por um instante, com a claridade de um sorriso nos dias chuvosos
1 Comments:
Caraca, Guga.
Você cuspiu na cara de todos nós uma verdade absoluta e inquestionável: somos uns filhos-das-putas (e eu não sei se esse plural 'tá certo). Penso de maneira bem parecida à tua nesses casos, você sabe disso. Mas é o mundo. Isso não vem ao caso, porém.
O caso é que, apesar da urgência do texto, de ele ter saído feito um esporro de palavras, com alguns erros de digitação e excessos, você demonstrou de maneira puramente poética o sonho, de maneira que esse texto pode não apenas tornar-se belo, mas até mesmo esclarecer uma duríssima realidade. Nesses casos, isso pode, sim, ajudar a mudar algo. Gorki aprendeu isso cem anos atrás, com seus contos socialistas. Mas isso não faz da crônica um folhetim tendencioso, não: nos faz sentar no camarote do ponto de vigia nos olhos de Gustavo Ribeiro.
E isso, meu caro, é escrever.
Aquele abraço, forte.
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