Lânguida lenda lisboeta (lenda)
Estando em Lisboa eu não podia deixar de ir ouvir o fado nos pequenos bares de lá, aqueles que ficam em bairros menos badalados, aparentemente numa outra Lisboa, menos cosmopolita.
Combinei com meus colegas, alguns deles também estudantes de intercâmbio, de irmos tomar um vinho nessas pequenas tabernas. Não conseguia me decidir se optaria por um vinho tinto do Porto ou por um vinho verde. Já que fui o primeiro a chegar, aproveitei os primeiros minutos para pensar sobre isso. Mas o tempo passava e eu ficava preocupado, porque ninguém aparecia – quer dizer, ninguém dos meus colegas, porque o bar estava cada vez mais cheio.
Vendo que eu estava sozinho já há muito tempo, um senhor de cabelos encanecidos perguntou se poderia me fazer companhia. Ele estava já meio ébrio, mas como eu também já estava não me importei. Sentou-se e conversamos. Falava tanto o velho, e com tanta riqueza de detalhes, que eu até duvidei se estava mesmo bêbado ou se era apenas um jeito estranho de ser. Contava sobre os anos em que Salazar comandou com mão de ferro o país, sobre a inauguração do Estádio da Luz e sobre os gols de Eusébio pelo Benfica.
Lá pelas tantas, aquele senhor ficou calado, observando fixamente um homem de negro que se postara perto da porta e, por sua vez, observava uma jovem que flertava com um rapaz. Senti-me perdido observando a formação dessa figura geométrica de olhares e interpelei meu conviva:
- Rui, o que é que há?
Ao que ele me respondeu, de uma maneira tipicamente lusitana:
- Estás a ver aquele gajo parado ali, à porta? Sei que não me vais acreditar, mas é um fantasma. Sim, é isso mesmo, oras. O fantasma de um homem que morreu de amor.
Apenas tive tempo de levantar as sobrancelhas em sinal de surpresa e Rui continuou:
- Ora, eu o conheci! Chamava-se Nuno Queiróz e estava apaixonado por uma pequena, Maria Fernanda... o sobrenome não me recordo, mas era algo como Medeiros... enfim, que importa? O que acontece é que a tal, depois de noivar com Nuno o deixou por um rapagão marialva. Ah, rapaz... não podes imaginar o estado em que o tal Nuno ficou. E, como se não bastasse, muitas vezes depois do fim do noivado ele encontrou os dois pelas ruas. O pobre então passou a enfrascar-se... acho que vocês do Brasil não dizem assim... quero dizer que ele ficava bêbado, compreendes? Enfim, passou a enfrascar-se e um dia apareceu morto dentro do rio, boiando suavemente.
- Que história triste, por que será que...
- Mas espera que não acabei! – disse Rui enquanto o grupo musical do lugar começava a tocar “Tudo isto é fado”, que eu conhecia na voz de Amália Rodrigues:
Almas vencidas
Noites perdidas
Sombras bizarras
Na mouraria
Canta um rufia
Choram guitarras
“Um dia estava a tal ingrata da ex-noiva a tomar uma bica (isso ele não explicara, mas eu sabia o que era, um cafezinho) com tal marialva e... advinhas quem surgiu? Pois o próprio Nuno! Não lhe disse nada, a mínima palavra. Mas dirigiu à mulher um olhar tão melancólico e gélido que a isso é atribuído o suicídio dela, que se enforcou no dia seguinte.
“E desde então, Nuno Queiróz segue as raparigas que põem cornos aos seus namorados, noivos ou o que o valha.”
Um arrepio me percorreu o corpo, bem a tempo de ouvir os fadistas cantarem:
Amor ciúme
Cinzas e lume
Dor e pecado
Tudo isto existe
Tudo isto é triste
Tudo isto é fado
Não sou um homem impressionável, mas aquela história não me fez bem, então paguei meu vinho e fui embora. Andando pelas irregulares ruelas daquela área de Lisboa, me senti um pouco melhor. Até que avistei o mesmo homem do bar, perseguindo outra moça. Digo perseguindo, mas ia com toda a calma, até mais lento do que ela. Com a segurança de quem tem certeza da sua eterna vingança.
Marcadores: Produção Textual I, UFRGS
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