segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Pater noster

Entrou no ônibus cumprimentando o cobrador, que era o de sempre, com o cabelo penteado para o mesmo lado, óculos caídos na mesma angulação sobre o nariz, o mesmo rosto algo tisnado e a usual cordialidade simpática, mas reservada, que imprimia em seu “boa noite”. Ela veio logo atrás dele, com a mesma cara de cansada que sustivera nos últimos tempos, lábios – gretados pelo vento forte das ruas do centro da cidade – entreabertos e olhos opacos. Ele não achava nela agora tanta fealdade quanto achara logo que a vira, durante uma aula, mas também não negava, no diálogo constante que travava entre si consigo, que esse constante estado de aparente estiolamento a fizera perder o elã que vira nela semanas depois de se conhecerem.
Sentaram-se. Como quase todos os assentos estavam já ocupados antes da chegada do casal, tiveram que sentar-se em dois assentos de corredor, ficando assim separados pelo mesmo, ainda que paralelos um ao outro. Para cruzar a distância erigiram a ponte dos braços, unidos pelas mãos entrelaçadas. Apesar de tudo, ainda a amava.
Na madrugada desse dia, sonhara coisas estranhas e confusas, como se saídas de um dos contos de Cortázar. Passou o dia todo abalado por isso e, talvez pela primeira vez desde que a nova professora de Latim começou a lecionar a aula, não tivera ímpetos irresistíveis de sonolência durante declinações e conjugações. Saíram os dois da aula e foram conhecer os pais dela, que finalmente veriam o tal sujeito de quem ela falava há meses.
No caminho, dentro do coletivo sacolejante e barulhento, o assunto não pôde ser outro senão os pais da moça. A mãe era uma dessas frívolas de meia-idade, que se ocupam em tentar igualar a filha em jovialidade. Não era danosa, apenas inconveniente e ridícula nas suas tentativas de fazer voltar o tempo passado e já por ela vivido. Mas o pai, ah, o pai! Por ele a jovem se desmanchava em elogios. Era um homem bom, justo, honesto e sincero. Era sempre presente ao lado da filha, exceto quando assuntos do ofício o obrigavam a deixá-la e à mulher para ir ocupar-se de o que quer que a empresa exigisse. Até suspeitou de um complexo de Electra na namorada enquanto a ouvia falar do pai, mas ela acabou por convencê-lo de que o sogro era mesmo um caso incomum, um desses homens excepcionais e irrepreensivelmente perfeitos. Era um bom homem, um bom homem, ela repetia. Um exemplo para ela na forma de agir e comportar-se, na forma de lidar com os outros, na bondade e na caridade. Um homem que botava lágrimas nos olhos da filha só à lembrança dele.
O rapaz, ouvindo isso, foi desanimando, sentindo-se diminuir, murchar, acabrunhar. Seu pai, como já contara a ela e agora ratificava, fora quase o exato oposto. Ausente até nos aniversários, na formatura do colégio e especialmente durante os problemas. Quase nunca aparecia, e quando o fazia era para ralhar com o filho, fosse por seus estudos, pelo seu estilo pessoal de vestir, pelo brinco que trazia em uma das orelhas, fosse pelo que fosse, visto que o velho parecia ver sucesso seu na frustração do jovem. Um homem que também botava lágrimas nos olhos do seu descendente à lembrança dele. Mas essas eram lágrimas amargas carregadas de ausência.
O pranto de ambos cessou quando chegaram ao ponto de descida e tiveram de apertar-se entre outros que desciam naquele mesmo ponto. Passado o aperto cada qual caminhava quieto, imerso em pensamentos que questionavam como seria possível que alguns tivessem escassez de algo tão essencial como carinho paterno e outros fossem nababos dessa mesma essência. “Ao menos fico feliz por ela...”, pensava ele. “Fico triste por ele...” , pensava ela, com uma dor alheia na origem mas muito íntima na intensidade. Ademais, só ressoava o estalido dos fortes e pesados sapatos de ambos a bater contra o impessoal e frio solo da calçada.
Ainda absortos, olhando para o chão e sem dirigir ao outro uma palavra sequer, tímidos e envergonhados cada qual com sua condição, chegaram à frente do prédio onde morava a moça. Ele já passara por aqueles corredores, escadas e pavimentos com seu entusiasmo por ficar em breve a sós com ela e também com beijos que iam de sua boca à dela, ou por outra, beijos que aconteciam como uniões de duas bocas que se queriam e desejavam. Mas agora já não havia entusiasmo nem beijos. Havia só ansiedade e certo temor, pequeno e danoso como um inseto venenoso a perambular por entre seu cérebro e coração. Parecia-lhe que, conforme subiam as escadas, a pressão em torno de sua cabeça aumentava, como se subisse a serra, ao passo que seu coração menos palpitava do que se debatia e parecia cair como na queda mais abrupta e acentuada de uma montanha-russa.
Nem percebeu quando ela abriu a porta. Só voltou a si quando a sogra, vestida com uma roupa mais apropriada ao esporte do que a uma recepção, lhe sorriu e disse um cumprimento que ele não decifrou, pois a audição só voltou-lhe depois de todos os outros sentidos, como se estivesse mais distraída que todos seus irmãos. Não quis sentar-se ainda à mesa, preferia esperar o sogro para cumprimentá-lo. Enquanto a sogra foi verificar o estado de cozimento daquilo que preparava (ele nem sabia o que era – boa parte de sua vida comera apenas comida pré-pronta e o que o refeitório da universidade oferecia – mas parecia ter nome francês), apareceu o homem. O maldito homem.
O rapaz saiu correndo, com o velho a tentar alcançá-lo. Quase rezou, desesperado para que Deus lhe desse forças de correr para o mais longe dali, o Pater noster que aprendera naquela tarde, mas percebeu a ironia que isso seria:
– “Já basta um pai nosso.”

Assim disse Gustavo @ 11:05 PM   1 comentário(s)

O Autor

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Nome: Gustavo Ribeiro
Lugar: Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Um cara aprendendo com a literatura e as culturas de outros países e do meu. Sempre aprendendo, sempre vivendo como se fosse o último dia.

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