Num cinema britânico...
Um cinema britânico. O filme já começou. Um espírito com expressão perdida assiste visivelmente (isto é, para os que o podem ver) desagradado ao filme. Têm no rosto um par de óculos com uma lente de cada cor que contrasta vivamente com sua essência incorpórea incolor. Veste uma roupa pesada e escura, típica da Inglaterra vitoriana. Está imóvel, mas resmunga, o que deixa o cavalheiro sentado ao seu lado impaciente.
- Meu senhor - resmunga o cavalheiro -, desculpe... mas o senhor está incomodando aos demais!
O espírito vira o rosto e abre a boca etérea para responder, mas interrompe o movimento e quase berra (isto é, para os que o podem ouvir):
- Mr. Dahl!
- Mr. Dodgson! - replica o outro, tão surpreso quanto o primeiro.
Mr. Dodgson: O que o senhor faz aqui? Quero dizer, o que um espírito como o senhor pode querer aqui, numa sessão de cinema?
Mr. Dahl: Que pouco polido e pouco coerente da sua parte dizer isso, Mr. Dodgson. Acaso o senhor também não é um espírito? E o tem sido há muito mais tempo do que eu!
Mr. Dodgson (um pouco contrariado, um pouco divertido): Bem, isso é verdade... Mas vim porque o filme me diz respeito!
Mr. Dahl: Uma biografia?
Mr. Dodgson (resmungando): Uma biografia... - E continua, em tom normal - Mais uma adaptação.
Mr. Dahl: Ah, entendo... sei como é.
Mr. Dodgson: Queira desculpar, mas temo que não, que o senhor não "saiba como é" (diz isso em leve tom de troça). O cavalheiro que dirige esta película é um costumaz violentador de obras literárias.
Mr. Dahl: Ah, então eu não sei, o senhor diz. Pois antes de adaptar um escrito seu, ele fez o mesmo com o meu.
Mr. Dodgson: A sério?
Mr. Dahl: A sério! Vocês ingleses acham que são os pioneiros até nas desgraças, não acham? Pois fica uma vez mais provado que os galeses é que são sempre os primeiros. (Sorri em silenciosa vitória.)
O silêncio acampa momentaneamente entre os dois, até que
Mr. Dodgson (como se falasse para si, somente): Veja que absurdo! Não bastasse botar sobre os ombros da minha protagonista mais um inglório decênio (e fazê-la flertar com um Chapeleiro andrógino, para dizer o mínimo), ainda empastela a Rainha de Copas com a Rainha Vermelha!
Mr. Dahl: Realmente lamentável.
Mr. Dodgson: E que doentio pendor este mentecapto tem para as coisas lânguidas! A Rainha branca, de uma figura atoleimada e desalentada, foi feita uma mistura de indiferença, apelo sensual (se benze) e desvario.
Mr. Dahl: Deviam cortar a cabeça a ele... ao menos artisticamente falando...
Mr. Dodgson (de maneira vaga): Certamente...
Mr. Dahl: Justo nossas obras, destinadas a fazerem as crianças sonharem (e, se inspiram os adultos, tanto melhor)... Por que ele não escolheu os livros de um demente? Afinal, eles não faltam na literatura...
Mr. Dodgson: Sim, sim. Sade escrevia nas paredes de seu cárcere com suas próprias fezes (pigarreia e pede desculpas pelo termo, ao que Mr. Dahl, espírito mais moderno, só pode achar graça), assim o faz o senhor Burton com a sétima arte.
Mr. Dahl (rindo): Vejo que o senhor não perdeu sua sagacidade, Mr. Dodgson.
Mr. Dodgson (suspirando): Me perdoe... Me excedi. Mas o fato é que não se pode se conformar com tamanha deturpação! E não se trata de ser avesso às modernidades e às novas linguagens, meu caro Mr. Dahl... Veja as adaptações cinematográficas anteriores que (interrompe a fala com um esgar de nojo e terror durante uma cena em que a mocinha tem de pisar cabeças cortadas a flutuar em água misturada a sangue; exalta-se) Ora, mas é o fim! (A plenos pulmões já) As cabeças nunca eram de fato cortadas! É um ultraje! Onde está o verdadeiro nonsense?!
A muito custo, Mr. Dahl consegue acalmá-lo e, depois de pedir que ele continue, ouve:
Mr. Dodgson (arfando): As adaptações anteriores não são de todo mal... O desenho do sr. Disney, por exemplo... Há, contudo, aquela fastidiosa versão para a televisão, do final da década de 1990... No geral, tudo plenamente suportável. Agora... ISTO!
Mr. Dahl: Sinto muito, muito mesmo. Eu não tive tantas vezes a minha obra adaptada, mas lembro com carinho de certo Mr. Wilder que fez um comovente Willy Wonka... O olhar perdido, entre sonhador e desiludido, daquele homem é algo muito cativante, emprestou ao filme uma emoção sincera e sublime. Já o novo Wonka que o senhor Burton escolheu... há algo de facínora, não no ator, mas no conjunto ator-diretor-clima geral da obra.
Mr. Dodgson: Essa parceria tanta vezes repetidas me dá a impressão de que sempre saberei mais como será o filme, pelo menos o suficiente para tirar toda a graça de assistir.
Mr. Dahl: O senhor tem razão. É bem verdade que vim mais para ver como é isso de cinema 3D e...
Mr. Dodgson: Ora, cinema 3D... Meu caro Mr. Dahl, o que é preciso realmente ver em nossas obras não precisa, nem pode, ser visto com esses óculos de péssimo gosto estético. (Levanta-se e começa a se retirar, seguido por Mr. Dahl) Seria preciso, antes, que lessem os livros, não cedendo à aparente facilidade de um filme, ao sentar-se e deixar-se levar sem ter de pensar muito. A "graça" de nossos livros deve ser buscada, através dos trocadilhos, dos enigmas (falo de meu caso, especificamente, mas certamente seus livros também têm suas riquezas recônditas), do estilo. (Já saíram do cinema e estão prestes a ir cada um para seu lado.) Em suma, Mr. Dahl, eu diria que antes de óculos, o que o público precisa é aprender a ler com o coração. (Acena levemente a cabeça e se vai.)
Mr. Dahl deixa-se ficar um pouco ali, à frente do cinema, olhando o movimento do público. Pensa no que Mr. Dahl disse. Chega à conclusão de que é um pouco piegas, mas que faz todo o sentido.