A queda (conto)
– “Senhor Gualberto, o senhor tem câncer em estágio terminal. Com os tratamentos disponíveis, lhe restam de quatro a seis meses de vida. Posso lhe garantir que esses meses serão de razoável qualidade e de relativa independência.”
Gualberto saiu do consultório do oncologista com uma sensação que distava de ser a de estarrecimento, de desespero; era antes uma insensibilidade obtusa, uma falta de sentimentos, um vazio, um oco. A ex-mulher, Maria Elenice, e os filhos, Paulo e Augusto, ficaram preocupados com o diagnóstico, porque Gualberto sempre dissera:
– “Se um dia pego uma dessas doenças, meto uma bala na cabeça, compreenderam?”
Gualberto afastou-se dos filhos, mesmo sendo o caçula Augusto quem cuidava do negócio que antes Gualberto gerenciava, uma empresa de recondicionamento de autopeças. Também não ia mais às reuniões do Rotary Club e simplesmente ignorava a antiga namorada, 15 anos mais nova. “Algo sinistro vem por aí”, pensava Augusto, entre contas de fluxo de caixa e tentativas de organização de estoque a partir de um muito rudimentar conhecimento das fórmulas de planilhas eletrônicas.
E veio: o pai de Augusto decidiu viver seus últimos dias dentro de um veleiro. Não era um barco grande demais, afinal Gualberto não era nem de longe milionário, mas era espaçoso o suficiente para abrigar uma cama, um fogão e uma geladeira diminutos, abastecidos por um gerador a óleo diesel. Quando precisava de algum suprimento, podia atracar na marina mais próxima e ir até um mercado. Quando estivesse cansado, podia ficar atracado à marina do clube do qual era sócio. Mas na maioria do tempo Gualberto gostava de velejar, de estar em movimento, de sentir a brisa e as marolas, de perscrutar as estrelas fumando o cigarro da única marca que aceitava (“Eu vou morrer mesmo, então me deixem fumar, cacete!”, dizia Gualberto, que nunca fora desbocado, mas que sabia enfatizar seu discurso com palavrões). Desviava de obstáculos no percurso, enfrentava regiões perigosas para o calado da embarcação, chegava perto da grande catarata, atracava em pequenas ilhas para sentir a solidão. Seria impossível para quem o visse, pele morena e olhos argutos, adivinhar-lhe um paciente com cirrose hepática e hepatocarcinoma.
Mas o câncer é progressivo e insidioso não só para o corpo, mas para a mente também. Gualberto tornava-se mais e mais taciturno com o passar das semanas e com a mudança do verão para o outono. Ficava mais na parte interna do veleiro, lendo e fumando, entre caixas e caixas (vazias e cheias) de Interferon e Ribavirina, parte do coquetel de medicamentos diários. Raramente se comunicava por rádio com terra firme; quando o fazia, era para verificar as condições do tempo para os próximos dias.
Começou a aceitar a morte. Destino cruel de todos; grande perseguidor que sempre há de nos alcançar, mais cedo ou mais tarde; imensa precipitação no negro e nada; o fim do ser. De que valia a vida assim, afinal? Viver preso a controles da taxa de leucócitos, neutrófilos, plaquetas... sentir fadiga, náusea... ter de abandonar a água a cada quinze dias para fazer exames que nunca só mostram sua lenta decadência.
Desligou o rádio, algum cargueiro perdido insistia em lhe mandar pedido de ajuda e o barulho lhe incomodava. Que incomodasse outro. “Estamos todos perdidos, cargueiro. Alguns mais do que outros, é só”.
Era fim de tarde, o pôr-do-sol se lhe apresentava como o lento sangrar de uma incandescente pedra viva afundando no horizonte. “Até o sol morre”, pensou, amargo. “Mais cedo ou mais tarde, qual a diferença, se o destino é o mesmo, se o esquecimento é nosso destino coletivo?”
Dirigiu suavemente o veleiro em direção à catarata onde a queda da água rugia furiosamente. Acendeu o último cigarro mirando o pôr-do-sol e não tocou mais no timão. Em terra firme, o presidente do clube, feliz, tentava contato para contar a boa nova do diagnóstico equivocado.
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