quinta-feira, 29 de abril de 2010

Num cinema britânico...

Um cinema britânico. O filme já começou. Um espírito com expressão perdida assiste visivelmente (isto é, para os que o podem ver) desagradado ao filme. Têm no rosto um par de óculos com uma lente de cada cor que contrasta vivamente com sua essência incorpórea incolor. Veste uma roupa pesada e escura, típica da Inglaterra vitoriana. Está imóvel, mas resmunga, o que deixa o cavalheiro sentado ao seu lado impaciente.

- Meu senhor - resmunga o cavalheiro -, desculpe... mas o senhor está incomodando aos demais!

O espírito vira o rosto e abre a boca etérea para responder, mas interrompe o movimento e quase berra (isto é, para os que o podem ouvir):

- Mr. Dahl!

- Mr. Dodgson! - replica o outro, tão surpreso quanto o primeiro.

Mr. Dodgson: O que o senhor faz aqui? Quero dizer, o que um espírito como o senhor pode querer aqui, numa sessão de cinema?

Mr. Dahl: Que pouco polido e pouco coerente da sua parte dizer isso, Mr. Dodgson. Acaso o senhor também não é um espírito? E o tem sido há muito mais tempo do que eu!

Mr. Dodgson (um pouco contrariado, um pouco divertido): Bem, isso é verdade... Mas vim porque o filme me diz respeito!

Mr. Dahl: Uma biografia?

Mr. Dodgson (resmungando): Uma biografia... - E continua, em tom normal - Mais uma adaptação.

Mr. Dahl: Ah, entendo... sei como é.

Mr. Dodgson: Queira desculpar, mas temo que não, que o senhor não "saiba como é" (diz isso em leve tom de troça). O cavalheiro que dirige esta película é um costumaz violentador de obras literárias.

Mr. Dahl: Ah, então eu não sei, o senhor diz. Pois antes de adaptar um escrito seu, ele fez o mesmo com o meu.

Mr. Dodgson: A sério?

Mr. Dahl: A sério! Vocês ingleses acham que são os pioneiros até nas desgraças, não acham? Pois fica uma vez mais provado que os galeses é que são sempre os primeiros. (Sorri em silenciosa vitória.)

O silêncio acampa momentaneamente entre os dois, até que

Mr. Dodgson (como se falasse para si, somente): Veja que absurdo! Não bastasse botar sobre os ombros da minha protagonista mais um inglório decênio (e fazê-la flertar com um Chapeleiro andrógino, para dizer o mínimo), ainda empastela a Rainha de Copas com a Rainha Vermelha!

Mr. Dahl: Realmente lamentável.

Mr. Dodgson: E que doentio pendor este mentecapto tem para as coisas lânguidas! A Rainha branca, de uma figura atoleimada e desalentada, foi feita uma mistura de indiferença, apelo sensual (se benze) e desvario.

Mr. Dahl: Deviam cortar a cabeça a ele... ao menos artisticamente falando...

Mr. Dodgson (de maneira vaga): Certamente...

Mr. Dahl: Justo nossas obras, destinadas a fazerem as crianças sonharem (e, se inspiram os adultos, tanto melhor)... Por que ele não escolheu os livros de um demente? Afinal, eles não faltam na literatura...

Mr. Dodgson: Sim, sim. Sade escrevia nas paredes de seu cárcere com suas próprias fezes (pigarreia e pede desculpas pelo termo, ao que Mr. Dahl, espírito mais moderno, só pode achar graça), assim o faz o senhor Burton com a sétima arte.

Mr. Dahl (rindo): Vejo que o senhor não perdeu sua sagacidade, Mr. Dodgson.

Mr. Dodgson (suspirando): Me perdoe... Me excedi. Mas o fato é que não se pode se conformar com tamanha deturpação! E não se trata de ser avesso às modernidades e às novas linguagens, meu caro Mr. Dahl... Veja as adaptações cinematográficas anteriores que (interrompe a fala com um esgar de nojo e terror durante uma cena em que a mocinha tem de pisar cabeças cortadas a flutuar em água misturada a sangue; exalta-se) Ora, mas é o fim! (A plenos pulmões já) As cabeças nunca eram de fato cortadas! É um ultraje! Onde está o verdadeiro nonsense?!

A muito custo, Mr. Dahl consegue acalmá-lo e, depois de pedir que ele continue, ouve:

Mr. Dodgson (arfando): As adaptações anteriores não são de todo mal... O desenho do sr. Disney, por exemplo... Há, contudo, aquela fastidiosa versão para a televisão, do final da década de 1990... No geral, tudo plenamente suportável. Agora... ISTO!

Mr. Dahl: Sinto muito, muito mesmo. Eu não tive tantas vezes a minha obra adaptada, mas lembro com carinho de certo Mr. Wilder que fez um comovente Willy Wonka... O olhar perdido, entre sonhador e desiludido, daquele homem é algo muito cativante, emprestou ao filme uma emoção sincera e sublime. Já o novo Wonka que o senhor Burton escolheu... há algo de facínora, não no ator, mas no conjunto ator-diretor-clima geral da obra.

Mr. Dodgson: Essa parceria tanta vezes repetidas me dá a impressão de que sempre saberei mais como será o filme, pelo menos o suficiente para tirar toda a graça de assistir.

Mr. Dahl: O senhor tem razão. É bem verdade que vim mais para ver como é isso de cinema 3D e...

Mr. Dodgson: Ora, cinema 3D... Meu caro Mr. Dahl, o que é preciso realmente ver em nossas obras não precisa, nem pode, ser visto com esses óculos de péssimo gosto estético. (Levanta-se e começa a se retirar, seguido por Mr. Dahl) Seria preciso, antes, que lessem os livros, não cedendo à aparente facilidade de um filme, ao sentar-se e deixar-se levar sem ter de pensar muito. A "graça" de nossos livros deve ser buscada, através dos trocadilhos, dos enigmas (falo de meu caso, especificamente, mas certamente seus livros também têm suas riquezas recônditas), do estilo. (Já saíram do cinema e estão prestes a ir cada um para seu lado.) Em suma, Mr. Dahl, eu diria que antes de óculos, o que o público precisa é aprender a ler com o coração. (Acena levemente a cabeça e se vai.)

Mr. Dahl deixa-se ficar um pouco ali, à frente do cinema, olhando o movimento do público. Pensa no que Mr. Dahl disse. Chega à conclusão de que é um pouco piegas, mas que faz todo o sentido.

Assim disse Gustavo @ 1:13 AM   0 comentário(s)

terça-feira, 20 de abril de 2010

Leitoras

Dia desses, eu procurava saber quem era e o que tinha escrito o Daniel Galera. O nome eu já conhecia e já tinha ouvido falar alguma coisa sobre ele, mas, sabendo que ele ia dar uma palestra na minha universidade, fiquei interessado em maiores detalhes. E fui procurar na internet, é claro.

Muita gente fala de como a internet é maravilhosa porque permite encontrar aquilo que a gente procura. Eu a acho valiosa porque permite encontrar o que não procuramos. Foi o que aconteceu comigo dessa vez: procurando pelo Daniel Galera, encontrei um tema para escrever – que só de longe tem a ver com o cara.

Quando mudei o mecanismo de busca de “Web” para “Imagens” (queria ver como era o tal Galera) encontrei o blog “Entreaberta”, em que o post “Apetitosa Cordilheira” (http://entreaberta.blogspot.com/2008/11/mamihlapinatapai.html) é ilustrado por esta foto:



Até agora, muitos dias depois que isso aconteceu, ainda não consigo olhar para a foto sem perder muito da minha capacidade de expressão. Não só por causa do suave mas puríssimo erotismo do seio entrevisto (de uma sensualidade perfeita, sem sobrar nem faltar, nem insosso nem agressivo), mas também porque não consigo imaginar um elogio mais alto a um livro, quase uma declaração, do que uma foto como essa. Me comoveria e me realizaria se o livro que aparece nessa foto fosse meu, tivesse na capa o meu nome e o nome de um dos meus mundos imaginários.

Não consigo não pensar nas mulheres cortazarinas vendo uma foto assim, especialmente em Alana de “Orientação dos gatos”, porque entre Patrícia (a autora do “Entreaberta”) e o livro parece existir uma ligação igual à de Alana com o gato do conto de Cortázar: uma ligação profunda de entendimento, cujos códigos e mesmo o simples entendimento básico escapam ao protagonista (no conto) e a mim (aqui escrevendo). É óbvio que há tensão, sensualidade, mistério... mas ele está irremediavelmente fora de nosso alcance. Quando Alana olha para o quadro, ou quando Patrícia estende o livro frente aos seios, se perdem (ou se encontram) em uma realidade da qual nos resta apenas ser espectadores.

Dias depois, ligo a televisão pela manhã, ainda meio tonto de um sono mal dormido, e vejo um vídeo que me chama a atenção. É este, de Thiago Pethit e Tiê:


Quem assistiu ao vídeo e me conhece há mais de dois dias entendeu porque o vídeo me interessa. Enquanto o protagonista anda pelas ruas da cidade (Horacio Oliveira?) a protagonista, que bota as cartas de tarô (Lucía, la Maga?) lê... Rayuela, do Cortázar! Mas, fora isso, a música é boa (a voz grave do Thiago faz um bonito dueto com a voz suave da Tiê) e animação é singela e agradável. E a Maga-em-desenho-animado deitada ao lado do livro dá uma sensação vagamente semelhante à da foto da Patrícia.

Mulheres e livros, como é bom descobrir seus mistérios.

Assim disse Gustavo @ 5:26 PM   0 comentário(s)

sábado, 3 de abril de 2010

Tchekhov e Sr. R

Fazia muito tempo que eu não entrava no MSN, mas ontem entrei e conversei com um amigo de longa data. É uma dessas amizades em que a sintonia de ideias é bem clara e que acaba nos revelando aspectos de nós mesmos.
Mas, no caso de ontem, o Sr. R. (apelido fictício do meu amigo, porque nem avisei a ele que escreveria um texto sobre isso) mostrou uma sintonia de ideias não só comigo, mas também com Tchekhov. Explico: Sr. R. me contava das recentes mudanças em sua vida, do fim do namoro de longo tempo e, no meio do relato, soltou uma frase que, imagino, ele não desconfie como é emblemática de um modo de pensar. Ele disse assim:

- "Sozinho acho mais fácil subir na vida".

O que isso tem a ver com Tchekhov? Sr. R. não é russo, não escreve teatro, nem contos (nem romances, nem poemas....). Mas, sem saber, e guardadas as devidas pertinências aos contextos originais, fez uma paráfrase de Tchekhov que disse, em seu conto Enfermaria n.º 6:

"A verdadeira felicidade é impossível sem a solidão." (TCHEKHOV, Anton. Enfermaria n.° 6. In: Idem. As três irmãs; Contos. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p. 344.)

Acho que Sr. R. nunca leu Tchekhov... o que torna a afirmação dele mais adequada como argumento nessa questão, já que afirmou uma verdade que parece estar no coração e na mente de todos que saibam refletir, sem simplesmente aderir a uma teoria intelectual.

Eu, como solitário meio imposto, meio voluntário, concordo.

Assim disse Gustavo @ 2:06 PM   0 comentário(s)

O Autor

O autor
Nome: Gustavo Ribeiro
Lugar: Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Um cara aprendendo com a literatura e as culturas de outros países e do meu. Sempre aprendendo, sempre vivendo como se fosse o último dia.

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