quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

A queda (conto)

– “Senhor Gualberto, o senhor tem câncer em estágio terminal. Com os tratamentos disponíveis, lhe restam de quatro a seis meses de vida. Posso lhe garantir que esses meses serão de razoável qualidade e de relativa independência.”

Gualberto saiu do consultório do oncologista com uma sensação que distava de ser a de estarrecimento, de desespero; era antes uma insensibilidade obtusa, uma falta de sentimentos, um vazio, um oco. A ex-mulher, Maria Elenice, e os filhos, Paulo e Augusto, ficaram preocupados com o diagnóstico, porque Gualberto sempre dissera:

– “Se um dia pego uma dessas doenças, meto uma bala na cabeça, compreenderam?”

Gualberto afastou-se dos filhos, mesmo sendo o caçula Augusto quem cuidava do negócio que antes Gualberto gerenciava, uma empresa de recondicionamento de autopeças. Também não ia mais às reuniões do Rotary Club e simplesmente ignorava a antiga namorada, 15 anos mais nova. “Algo sinistro vem por aí”, pensava Augusto, entre contas de fluxo de caixa e tentativas de organização de estoque a partir de um muito rudimentar conhecimento das fórmulas de planilhas eletrônicas.

E veio: o pai de Augusto decidiu viver seus últimos dias dentro de um veleiro. Não era um barco grande demais, afinal Gualberto não era nem de longe milionário, mas era espaçoso o suficiente para abrigar uma cama, um fogão e uma geladeira diminutos, abastecidos por um gerador a óleo diesel. Quando precisava de algum suprimento, podia atracar na marina mais próxima e ir até um mercado. Quando estivesse cansado, podia ficar atracado à marina do clube do qual era sócio. Mas na maioria do tempo Gualberto gostava de velejar, de estar em movimento, de sentir a brisa e as marolas, de perscrutar as estrelas fumando o cigarro da única marca que aceitava (“Eu vou morrer mesmo, então me deixem fumar, cacete!”, dizia Gualberto, que nunca fora desbocado, mas que sabia enfatizar seu discurso com palavrões). Desviava de obstáculos no percurso, enfrentava regiões perigosas para o calado da embarcação, chegava perto da grande catarata, atracava em pequenas ilhas para sentir a solidão. Seria impossível para quem o visse, pele morena e olhos argutos, adivinhar-lhe um paciente com cirrose hepática e hepatocarcinoma.

Mas o câncer é progressivo e insidioso não só para o corpo, mas para a mente também. Gualberto tornava-se mais e mais taciturno com o passar das semanas e com a mudança do verão para o outono. Ficava mais na parte interna do veleiro, lendo e fumando, entre caixas e caixas (vazias e cheias) de Interferon e Ribavirina, parte do coquetel de medicamentos diários. Raramente se comunicava por rádio com terra firme; quando o fazia, era para verificar as condições do tempo para os próximos dias.

Começou a aceitar a morte. Destino cruel de todos; grande perseguidor que sempre há de nos alcançar, mais cedo ou mais tarde; imensa precipitação no negro e nada; o fim do ser. De que valia a vida assim, afinal? Viver preso a controles da taxa de leucócitos, neutrófilos, plaquetas... sentir fadiga, náusea... ter de abandonar a água a cada quinze dias para fazer exames que nunca só mostram sua lenta decadência.

Desligou o rádio, algum cargueiro perdido insistia em lhe mandar pedido de ajuda e o barulho lhe incomodava. Que incomodasse outro. “Estamos todos perdidos, cargueiro. Alguns mais do que outros, é só”.

Era fim de tarde, o pôr-do-sol se lhe apresentava como o lento sangrar de uma incandescente pedra viva afundando no horizonte. “Até o sol morre”, pensou, amargo. “Mais cedo ou mais tarde, qual a diferença, se o destino é o mesmo, se o esquecimento é nosso destino coletivo?”

Dirigiu suavemente o veleiro em direção à catarata onde a queda da água rugia furiosamente. Acendeu o último cigarro mirando o pôr-do-sol e não tocou mais no timão. Em terra firme, o presidente do clube, feliz, tentava contato para contar a boa nova do diagnóstico equivocado.

Marcadores: Produção Textual I, UFRGS

Assim disse Gustavo @ 4:08 PM   0 comentário(s)

Dango (crônica)

Adão José Ribeiro, o Dango, dá, em pareceria com uma empresa de logística, uma série de palestras sobre trânsito, e eu tive a sorte de assistir a uma dessas palestras. Mas Dango não é legislador, não é guarda de transito, não é funcionário da EPTC nem de um centro de formação de condutores. Por sua condição especial, fica-se tentado a dizer que ele é uma vítima do trânsito.

Só que não se pode dizer isso, porque a postura de Dango é absolutamente oposta à esperada: não se ouve, na palestra dele, vontade de se postar como vítima ou como coitado; também não se ouve o menor tom autocomiseração ou mesmo de rancor.

Dango sofreu, há 12 anos, quando tinha 22 anos de idade, um acidente: pegou carona com um amigo, o carro capotou, ficou dias desacordado no hospital e, quando finalmente retomou a consciência, não podia movimentar nada abaixo do pescoço. Com o tempo e as sessões de fisioterapia, recuperou alguns movimentos limitados da mão direita, o que lhe permite movimentar a cadeira de rodas.

Seria esperado, então, que a palestra se desenvolvesse em torno de temas como violência no trânsito, relação “bebida e direção”, imprudência ao volante, tudo em um tom muito sóbrio e com ares de mau augúrio.

Muito pelo contrário. O que se vê em Dango surpreende. Ele não só tem consciência de que a revolta não mudaria a situação como também aceita as coisas com um bom humor [...]. Por exemplo, Dango relata que um dia, anos depois do acidente, policiais pararam o carro de um amigo seu, em que ele estava como carona, e pediram que ambos descessem. Adão explicou o acidente que sofrera e as consequências dele e o policial respondeu:

“Tá, então põe as duas mãos na cabeça!”

Tudo o que Dango fez foi rir e explicar de novo, e o policial retrucou:

“Tá, então fica bem paradinho aí, hein? Não te mexe!”

Dango conta que fez exatamente isso, que era a única coisa que podia fazer, e riu.

A grande lição de Adão fica sendo, então, não sobre a violência no trânsito, mas sobre a capacidade de enfrentar as situações penosas com bom humor. E, acima de tudo, sua mensagem maior é a de que a vida sempre vale a pena ser vivida.

Marcadores: Produção Textual I, UFRGS

Assim disse Gustavo @ 3:59 PM   0 comentário(s)

O Autor

O autor
Nome: Gustavo Ribeiro
Lugar: Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Um cara aprendendo com a literatura e as culturas de outros países e do meu. Sempre aprendendo, sempre vivendo como se fosse o último dia.

Ver meu perfil completo

Leia!

  • Página do Autor no Orkut
  • Morellianas: Conversas sobre Cortázar
  • Canetagens
  • Fotolog da Flá Damy
  • Jogo de Idéias
  • Verdade Falsificada

Anteriores…

  • Upcoming movie traduzido
  • Avant-première traduzido
  • Minutos de acréscimo
  • Copa!
  • Post Scriptum ad Ornithorhyncho texto
  • Eu sou um ornitorrinco
  • Num cinema britânico...
  • Leitoras
  • Tchekhov e Sr. R
  • Não tem graça

D’Antanho:

  • março 2005
  • junho 2005
  • julho 2005
  • agosto 2005
  • setembro 2005
  • outubro 2005
  • novembro 2005
  • dezembro 2005
  • março 2006
  • abril 2006
  • junho 2006
  • julho 2006
  • outubro 2006
  • novembro 2006
  • dezembro 2006
  • janeiro 2007
  • fevereiro 2007
  • março 2007
  • abril 2007
  • julho 2007
  • setembro 2007
  • outubro 2007
  • janeiro 2008
  • fevereiro 2008
  • setembro 2008
  • outubro 2008
  • novembro 2008
  • janeiro 2009
  • fevereiro 2009
  • agosto 2009
  • outubro 2009
  • novembro 2009
  • dezembro 2009
  • março 2010
  • abril 2010
  • maio 2010
  • julho 2010
  • setembro 2010
  • Posts Atuais

Powered by Blogger

Firefox - Download