terça-feira, 31 de outubro de 2006

Pior inimigo



Louis observava o céu quase tão enuveado quanto seus pensamentos enquanto caminhava de volta para casa, em mangas de camisa, carregando o paletó dobrado ao redor do braço esquerdo. O ar estava denso e sufocante, e ele suava em demasia, especialmente na nuca.
Homem ambicioso, sabia que não subsistiria por muito mais em seu ramo de negócio a menos que eliminasse a concorrência. Bem, talvez não fosse para tanto, mas os padrões de um homem ambicioso são mais elevados. Contudo, antes era preciso descobrir quem eram seus concorrentes. E, por não saber quem eram, Louis encontrava-se num estado de extrema exasperação: até o constante "toc, toc" que seu calçado fazia ao colidir com a calçada de concreto o irritava. Precisava, era imperativo, que descobrisse quem lhe roubara uma fatia do mercado, para então poder aniquilar o infeliz!
Súbito, a linha de raciocínio do homem de "30 e alguns" anos, como ele mesmo se classificava, é talhada pela aguçada tesoura do acaso. Voltando a si, vê-se em uma praça, onde alguns ciganos "atacam" os passantes, oferecendo seus serviços místicos. Como reflexo, Louis livra-se da mão enrugada que lhe cingia o braço com um repelão. A velha senhora (que parecia ser a mais anciã do grupo romani) suspira, assustada. Sem dar tempo para que o empresário reaja, ela o argúi, com os olhos arregalados:
- Queres conhecer teu futuro, senhor? O que de bom o Fado te reserva? Ou aquilo que de mal pode te acontecer, que te impede de atingir todas as metas que engendras e todas as resoluções que tomas? O que te pode roubar o amor, a fortuna e a felicidade?
Surpreendido, mas sem terror, o suarento homem de negócios aquiesce e segue a encarquilhada anciã, cujas rugas apenas empalidecem a beleza de antanho. Segue-a até um cortiço de madeira, depois espreme-se atrás dela para subir em uma estrita escada do mesmo material. Finalmente chegam ao que parece ser a morada da velha e lá ela lhe diz para sentar, enquanto busca o fetiche.
Dentro de um velho e empoeirado baú ela retira um ensebado tarô, já amarelado e empenado pelo tempo. Ela o manipula destra e celeremente, espalha-o sobre a mesa, com as ilustrações viradas para baixo e pede que Louis retire três cartas. Por uma destas ironias da vida, justamente a carta que ele tinha em mente foi a que primeiro retirou... A XIII, a Morte. Caiu em um estado de estupefação e não pôde mais concentrar-se nas outras cartas que retirava, apenas parecia fazê-lo como se movido por forças externas. Só recobrou a lucidez (de forma semelhante ao que ocorrera na praça) quando a cigana voltou a tocar-lhe o braço.
- Preste muita atenção ao que vou lhe dizer, senhor! Das próximas palavras que ouvirás depende a satisfação de teus desejos. Teu mais poderoso e influente adversário está mais perto que imaginas. Ele quase pode sentir teus pensamentos antes que a luz dá razão os conceba! É inteligente e sagaz.
- E quem é ele? - retrucou Louis - Quero saber quem é e eu mesmo hei de... retirá-lo do meu caminho.
- Tens certeza que desejas mesmo saber, meu senhor? Algumas vezes o conhecimento é mais daninho que a ignorância...
- Ora, não banque a conselheira! Exijo que me diga quem é! Vou meter uma bala na cabeça desse cretino!
- Eu não posso dizer, mas - interrompeu a fala para inspirar um grande leva de ar - posso lhe fornecer os meios para tal.
Com isso, a senhora levantou-se e voltou ao baú, de onde retirou um pesado objeto envolto em um tecido carmesim aveludado. Entregando-o ao homem, disse-lhe:
- Chega em tua casa e desnuda este objeto. Ele te mostrará teu algoz, aquele que é o único responsável por teus fracassos e tropeços. Mas não o abra até lá!
Louis, agradecido, concordou com a condição, pagou à cartomante uma quantidade consideravelmente superior à que devia e retirou-se, a passos largos e confiantes, respirando mais aliviado, embora ainda sentisse um pouco do cheiro de bolor da casa da velha.
Ao chegar em casa, fez tudo como instruído. Logo, eliminou aquele que era o maior obstáculo entre ele e a felicidade.
Dois quartos de hora depois seu corpo foi encontrado sobre a cama, com um esgar de espanto, a arma que disparara contra o peito ao lado, quase sobre o pano carmesim que servira de embrulho a um espelho.

Assim disse Gustavo @ 7:28 PM   0 comentário(s)

domingo, 15 de outubro de 2006

Muy amigos!

A internet é um fenômeno paradoxal ao extremo, causando minha perplexidade em diversas situações. O caso que maisme afeta agora é o das amizades. Veja só:

Minha namorada acaba de decretar que virou ex (inclusive, ela leu o texto "Morto" e achou que era direcionado a ela... Contudo, não soube ler "Mitologia", para saber os reais sentimentos que a ela se destinam) e preciso de amigos pra conversar. Na minha lista do MSN (esse câncer digital) constam 16 pessoas OnLine, dentre elas algumas pelas quais tenho o maior apreço, e considero (ou considerava?) amigos de coração. Pois bem, preciso de ajuda, me sinto um farrapo, um pária, um refugo... Falei com alguns, e tudo que ofereceram foi uma conversa fria, impessoal. Disse-me outro (o único que tolera meus devaneios textuais) que até ficaria mais, mas o pai mandou-o dormir. Está certo, não posso julgá-lo. Mas por um amigo, um amigo de verdade, desafiaria pai, governo, inferno... tudo, enfim. Por que não há nada mais negro que um coração pesado com a mágoa.

Os outros foram piores. Três moças, flores de pessoa (ou ao menos achava eu que o eram), me ofereceram breves diálogos na temperatura dos pólos, ameaçando-me (com boa intenção) com uns tabefes uma delas. As outras descontinuaram a conversa, impassíveis, insensíveis. Quando não se tem o que dizer, diz-se que faltam palavras.

Outros ainda sequer responderam, um homem muito iluminado e uma moça que parece temer-me.

É engraçado... Mas, faz pouco tempo, coloquei no mesmo MSN, como parte de meu nick um texto que dizia precisar eu de amigos, mais de meia dúzia ofereceu-se. Os mesmos que hoje estão aí, sem oferecer sequer os ouvidos, quanto mais um abraço ou uma conversa.

Agora, vejo com clareza, não estou morto para alguns poucos. Morri para todos, até para mim. A vida é um longo (podendo ser abreviado) caminho escuro onde as conveniências fazem mudar tudo, até a compaixão.

Melhor morto que com amigos como vocês, cambada de ingratos.

Assim disse Gustavo @ 10:12 PM   1 comentário(s)

domingo, 8 de outubro de 2006

Morto (mas não enterrado)

Suzano-o no Mikoto, entidade do Xintoísmo Japonês, relacionado à morte.


Caros amigos.
É sem pesar, e até com certo regozijo, que vos comunico estar morto. Sim, decidi que não mais vivo. Morri como forma de protesto e desabafo e agora, no post mortem, o que resta em meu coração é o alívio e a serenidade.
Confesso que a decisão foi meio precipitada, mas dela não me arrependo - nem arrepender-me-ei. A vida ia muito boa, muito bela, mas a estragavam as pessoas. As pessoas confusas, presas a conceitos que lhes fazem sofrer e lhes restringem o sadio frescor intelectual e espiritual. As pessoas que não sabem perdoar, que não têm a grandeza de agir sempre com sinceridade e que se enredam em esquemas viciosos de sofrimento causado por elas mesmas.
Morri, deliberadamente, para não mais ter de conviver com pessoas de tão torpe pensar e sentir, incrivelmente estultas e que crêem que no pequeno, no singelo, no modesto, nada de valor se encontra.
Outras, ainda, sufocam o que de mais lindo pode haver em uma vida humana - isto é, o amor - em detrimento do material. Este, mesmo feito da mais lôngeva liga é perene comparado ao verdadeiro amor, que é eterno.
Aos que desconfiam de seus irmãos sem nem os conhecê-los, condenando ao limbo o germe de uma futura amizade (ao menos para mim, as melhores amizades foram as mais improváveis) e aos que esquecem-se dos bons momentos e das mãos estendidas a eles nos momentos de necessidade também atribuo meu falecimento.
Desta forma, que festejem os que acreditam que eu lhes causava grande dano, ou que acreditavam ser eu um crápula por alguma eventual picuinha em que comigo estivessem envolvidos! De vós não levo rancor, raiva, mágoa ou qualquer sentimento.
E, meus amigos, não chorai! Não sofri, estejam certos. Melhor assim, pois os finados sempre podem aparecer aos que lhe são caros, evocando reminiscências.
Minha causa mortis foi minha vontade de viver só para os que sabem o quanto a vida é frágil.

Assim disse Gustavo @ 2:44 AM   4 comentário(s)

quarta-feira, 4 de outubro de 2006

Não ouse sorrir pra mim!


Uso o transporte público da capital gaúcha 2 dias por semana, no mínimo, há quase um ano, para chegar ao campus da universidade e, como se o "meio" emulasse o "fim", aprendi nos vagões do Trensurb e nos carros da Carris coisas interessantes.

A que dentre todas mais me compeliu a escrever novamente, depois de um hiato que deve ter feito a alegria dos críticos da minha medíocre produção textual ("Escritor de araque... nem se recorda sobre o dativo!"), é tão patética para mim que supera até a falta de cordialidade dos jovens que, encarando um idoso ou uma idosa, não lhe cedem o lugar sentado.

O que me incomoda e entristece é a frieza do veículo e dos passageiros, causada pela tecnologia. Ora, nos tempos em que os charmosos bondes cruzavam as cidades, o trajeto era mais lento, porém menos truculento e mais agradável! Condutor e cobrador vestiam-se de maneira não menos que elegante e todos os passageiros aprumavam-se para embarcar no transporte. Era um acontecimento! E muitos relacionamentos (amizades, sociedades e até casamentos) podiam surgir entre os habituais companheiros de viagem.

O que vejo, contudo, em minha rotina é o contrário. Claro, talvez uma roupa demasiadamente fina para os transportes coletivos atuais fosse um exagero e causasse estranheza. Mas a cordialidade nunca deveria ser posta de lado pelo simples passar do tempo.

Tudo contribui para que aqueles relacionamentos dos bondes não possam ser vividos no trem ou no ônibus atual: a velocidade maior, o barulho mais intenso, a tediosa rotina que tornou-se o uso de um transporte desse tipo... As tecnologias paralelas jogam mais uma pá de terra sobre o túmulo: MP3 Players e celulares são barreiras muito maiores que um jovial e convidativo livro. Podia-se perguntar "O que está lendo?" para encabeçar um diálogo que tornasse o percurso mais agradável, mas "O que está ouvindo?" é uma forma muito invasiva de tentar contato. Interromper uma ligação, então, é total falta de etiqueta. (E isso me lembra de Nelson Rodrigues: "O desenvolvimento humaniza a máquina e maquiniza o homem".)

Mas a forma menos retribuida e mais ingrata de tentar estabelecer contato, de tentar ser simpático é o simples, inocente e quase idílico sorriso. Poucos retribuem um sorriso, na melhor das hipóteses. Na pior, hão de achar que o sorridente é um maníaco, um sociopata tentando atrair uma vítima.

É como se a neurose popular quanto aos maníacos que sorriem de maneira intencionalmente inocente tomasse conta de todos os passageiros e ninguém mais acreditasse em um sorriso sincero e amistoso. Já aconteceu comigo de sorrir para outro passageiro e o mesmo me olhar de viés, com uma expressão de desconfiança, como se eu fosse um mercador de rua lhe oferecendo uma droga ilícita e obscena.

Meu desgosto com essa aridez anímica só é superada pela rara e cristalina sensação de receber o sorriso ou uma resposta. Como é bonita uma amizade que já em suas raízes contraria a perversa lógica das relações modernas. Ainda existem, graças a Deus, os que sabem que não é crime sorrir.

Assim disse Gustavo @ 11:30 PM   2 comentário(s)

O Autor

O autor
Nome: Gustavo Ribeiro
Lugar: Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Um cara aprendendo com a literatura e as culturas de outros países e do meu. Sempre aprendendo, sempre vivendo como se fosse o último dia.

Ver meu perfil completo

Leia!

  • Página do Autor no Orkut
  • Morellianas: Conversas sobre Cortázar
  • Canetagens
  • Fotolog da Flá Damy
  • Jogo de Idéias
  • Verdade Falsificada

Anteriores…

  • Upcoming movie traduzido
  • Avant-première traduzido
  • Minutos de acréscimo
  • Copa!
  • Post Scriptum ad Ornithorhyncho texto
  • Eu sou um ornitorrinco
  • Num cinema britânico...
  • Leitoras
  • Tchekhov e Sr. R
  • Não tem graça

D’Antanho:

  • março 2005
  • junho 2005
  • julho 2005
  • agosto 2005
  • setembro 2005
  • outubro 2005
  • novembro 2005
  • dezembro 2005
  • março 2006
  • abril 2006
  • junho 2006
  • julho 2006
  • outubro 2006
  • novembro 2006
  • dezembro 2006
  • janeiro 2007
  • fevereiro 2007
  • março 2007
  • abril 2007
  • julho 2007
  • setembro 2007
  • outubro 2007
  • janeiro 2008
  • fevereiro 2008
  • setembro 2008
  • outubro 2008
  • novembro 2008
  • janeiro 2009
  • fevereiro 2009
  • agosto 2009
  • outubro 2009
  • novembro 2009
  • dezembro 2009
  • março 2010
  • abril 2010
  • maio 2010
  • julho 2010
  • setembro 2010
  • Posts Atuais

Powered by Blogger

Firefox - Download